Epidemia dos vapes
Consumo de cigarros eletrônicos cresceu 600% nos últimos seis anos no Brasil, um risco de saúde pública grave que afeta principalmente adolescentes, que representam 70% dos fumantes na versão aerossol
Foi durante sonho de um farmacêutico chinês que o cigarro eletrônico, popularmente conhecido como vape, nasceu. Hon Lik era um fumante compulsivo, seu pai havia morrido por um câncer no pulmão e ele queria bolar um produto que minimizasse os danos à saúde de quem fosse tabagista. Ele sonhou que se afogava em uma nuvem de vapor, e daí criou e patenteou o protótipo do ruyan (que significa “como um cigarro”, em mandarim) – a criação de uma bobina ligada a uma bateria que aquece líquido e produz vapor inalável ganhou popularidade rapidamente. Foi anunciada como um método mais seguro de manter o vício em nicotina e até um artifício para abandoná-lo. Só que 20 anos depois o sonho chinês resultou em desastre global. Os substitutos aos convencionais não diminuem riscos muito menos se tornaram porta de saída do mesmo. Pelo contrário, cativaram principalmente adolescentes e crescem de maneira tão exponencial quanto perigosa.
Nos últimos seis anos, o consumo de vapes aumentou 600% no Brasil, mesmo com a proibição de comercialização desde 2009. Segundo o Ipec (Instituto de Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), no final do ano passado eram cerca de 3 milhões o número de usuários. A maioria na perigosa faixa dos 13 aos 17 anos – 17% deles já fumaram na versão eletrônica, sendo que entre 16 e 17 anos o percentual sobe para quase um quarto desses adolescentes, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Seria, talvez, um pouco menos preocupante se fosse clara a composição de cada um dos aerossóis oferecidos; e se em testes de laboratório não fosse detectada concentração de nicotina por vezes 20 vezes à de cigarro de fumaça, além de uma infinidade de aditivos na composição sem qualquer critério de segurança.
Um dos grandes problemas dos vapes é que a sugestão original de que era um substituto mais seguro aos cigarros continua, mesmo que todas as evidências apontem o contrário. Com a omissão de composição e níveis altamente viciantes, como a nicotina, o usuário continua a acreditar não estar consumindo algo tão nocivo ao organismo ao inalar vapor em vez de fumaça, mas os pulmões não são feitos nem para um nem para o outro. Assim, o nível de risco à saúde não possui sequer parâmetro e depende de uma série de fatores – desde a fabricação e natureza do produto à frequência e estilo de consumo. Dado que todos consumidos no Brasil são originários de contrabando, o cenário só piora, ao ponto de a Organização Mundial da Saúde (OMS) nivelar os dois, determinando que “o uso de cigarro eletrônico deve ser encarado da mesma forma que o tabagismo quanto aos malefícios à saúde”.
“É mais nocivo até. O jovem está ficando dependente da nicotina mais facilmente e as doenças causadas pelo tabaco estão se repetindo com o cigarro eletrônico, mas cada vez mais cedo. O cigarro eletrônico não é o que a indústria lançou como sendo um mecanismo para se livrar do cigarro normal, isso não acontece”, diz o coordenador do projeto antitabágico do Hospital Universitário da USP, o médico João Paulo Lotufo. “Uma boa parte dos jovens vai criar vício em nicotina, uma droga que causa uma dependência muito forte. É mais difícil parar de fumar do que de beber. Nós vamos criar um exército de dependentes que vão fumar o resto da vida.”
Mesmo que a composição varie por cada modelo de cigarro eletrônico, uma regra de equivalência seria o número de tragadas. Peguemos os pods, que são uma versão de vaporizador menor e mais fácil de porte do que os vapes. De modo geral, são vendidos com indicação de quantidade de tragos (ou puffs) que proporcionam – um pod 5000 equivale à mesma quantidade de vaporizações em média. Se um cigarro oferece uma média de 15 baforadas, um maço com 20 bastonetes equivale a 300. Logo, um pod 5000 comporta o equivalente a 16 maços convencionais, dado que um usuário intenso chega a 400 ou 450 levadas à boca diariamente, sem saber está consumindo um maço e meio por dia. Se já foram encontradas concentrações de nicotina 20 vezes maiores nas versões em vapor sobre as de fumaça, compute o risco que oferecem.
Tanto que uma das maiores preocupações sobre a saúde é relacionada aos efeitos pulmonares do vapor inalado. Em 2019, antes de virarem febre juvenil por aqui, os EUA encontraram recorrência de condições pulmonares que batizaram de Evali (acrônimo de E-cigarette or Vaping product use Associated Lung Injury ou lesão pulmonar associada ao uso de cigarros eletrônicos ou produtos de vaporização), com sintomas respiratórios graves semelhantes aos observados nos casos graves de Covid. O uso está associado também a riscos cardiovasculares, elevação da pressão arterial, sobrecarregando a função cardíaca e aumentando os riscos de acidentes vasculares cerebrais (AVCs) e outras complicações associadas. Sem contar que a nicotina desencadeia modificações no sistema nervoso central e influencia em especial saúde emocional e comportamento do usuário, especialmente os adolescentes, nos quais o cérebro continua em formação.
Os efeitos do uso da versão eletrônica vão além das invisíveis. Segundo a dentista Gabriela Nicolellis, que foi apelidada de doutora hate, pela aversão que tem ao produto, os vapes podem causar perda de sensibilidade gustativa, falta de saliva (xerostomia) e perda de olfato, entre outros. “São agentes modificadores de saliva, impactando diretamente na capacidade de neutralização. Reduzem o PH da boca, já que são normalmente consumidos com bebidas energéticas ou alcoólicas, favorecendo assim o envelhecimento precoce bucal. Ou seja dentes com perdas de estruturas inorgânicas resultando em aspecto envelhecido”, diz ela. “Além da nicotina, existem mais de 130 substâncias tóxicas com potencial cancerígeno. Já há vários registros de queimaduras faciais por conta da explosão da bateria do dispositivo. Fora que de acordo com a OMS, cerca de 70% dos usuários têm entre 15 e 24 anos de idade.”
Em abril deste ano, em nova rodada de avaliação sobre a proibição dos cigarros eletrônicos no País, os diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiram por unanimidade mantê-la, baseados em relatório que mediu impactos do impedimento da comercialização no Brasil e da liberação em outros países. No estudo, foi constatado que em localidades onde os vapes circulam livremente, como EUA e Reino Unido, houve aumento de fumantes entre adolescentes e até crianças. O potencial de dependência foi outro ponto-chave na decisão unânime, além da falta de estudos dos efeitos e riscos no longo prazo, e também a posição referencial que o Brasil ocupou nos últimos anos no combate ao tabagismo. Em dezembro de 2023 a OMS ratificou a posição brasileira, alertando que "não é recomendado que governos permitam a venda de cigarros eletrônicos como produtos de consumo na prossecução de um objetivo de cessação". "Destaco o aumento do risco da iniciação de jovens e adolescentes ao tabagismo, a alta prevalência de uso em países que permitem tais produtos, em especial por crianças, adolescentes e adultos jovens e ausência de estudos que comprovem que estes produtos provoquem menos danos à saúde", afirmou a diretora da Anvisa Danitza Buvinich durante seu voto.
“Se não pode importar, não pode produzir, não pode comercializar, não deveria ser feita vista grossa para o uso e venda, mas é. Isso é um absurdo. É vendido em qualquer banca de jornal, então não há um empenho político, não há punição para o comércio. Quando fizemos a lei onde foi proibido fumar em ambiente fechado, esta pegou porque havia punição para o dono do restaurante, uma multa que depois dobrava e a reincidência fechava o recinto. Vape você pode pedir por delivery”, lamenta Lotufo.
Mesmo assim, tramita um projeto de lei no Senado, de autoria de Soraya Thronicke, para autorização do consumo, produção, comercialização, exportação e importação dos dispositivos. Quem a apoia são as empresas do setor, como a Philip Morris Brasil, em que a versão aerossol representa atualmente 36% de sua receita no exterior. Sobre a decisão brasileira, manifestaram em nota que "a manutenção da proibição dos Dispositivos Eletrônicos de Fumar (DEFs) está em descompasso com o crescimento descontrolado do mercado ilícito, comprovadamente acessível a cerca de 4 milhões de brasileiros que utilizam diariamente um produto sem qualquer controle de qualidade". Não deixa de ser verdade, mas faltou dizer sobre o potencial viciante, o efeito de porta de entrada para o tabagismo e os riscos para a saúde de eventual liberação.
Fumaça x Vapor
Fumaça: Produzida por meio da combustão do tabaco, liberando uma série de substâncias tóxicas, incluindo alcatrão e monóxido de carbono.
Vapor: Funciona por meio da vaporização de líquidos que contêm nicotina, aromatizantes e outros químicos. Libera um aerossol que pode conter substâncias nocivas.
Fumaça: A nicotina presente causa alta dependência e a quantidade varia de acordo com a marca e tipo.
Vapor: Pode conter até 20 vezes mais nicotina do que o cigarro tradicional, o que pode conduzir a uma dependência mais rápida e intensa.
Fumaça: Prejuízo à saúde é amplamente conhecido, com campanhas anti-tabagismo e restrições de propagandas.
Vapor: Grande parte das pessoas acredita erroneamente que são uma alternativa segura.
Fumaça: O início geralmente ocorre na adolescência, associado à pressão social ou curiosidade.
Vapor: A utilização costuma ser o passo anterior antes do tabagismo convencional.